Alguém já ouviu falar
de Coco de Umbigada? E de Sambada de Coco…? Vamos recapitular então....
O coco é um ritmo
típico do nordeste do Brasil, de influência africana e indígena, com músicas de
letras simples e que tira partido da zabumba dos mestres percussionistas, sendo
acompanhado por dança de roda.
O coco é, assim, um
forte elemento da cultura de raiz das comunidades afro-brasileiras do nordeste:
nasceu nos quilombos e se proliferou por todo o nordeste, adquirindo diferentes
nomes e estilos, incorporando as caraterísitcas e os elementos dos lugares por
onde se alastrava. Por isso, hoje em dia, existe diferentes tipos de coco, como
coco de roda, coco de salão, coco de rojão, coco de furada, coco de bolada,
coco de pisada, coco de umbigada.
Em Olinda, no bairro
de Guadalupe o coco é de Umbigada. Beth de Oxum e sua família procuram manter
vivas as suas próprias raízes, uma herança de Paratibe, a aldeia de onde provem
o marido de Beth, o músico Quinho Caetés.
O nome Umbigada vem da
dança, que antes era dançada de forma a que as barrigas batessem uma na outra,
umbigo com umbigo. Hoje em dia, apenas simulam o movimento, marcando o ritmo da
sambada com o sapateado dos pés.
Com o tempo a tradição
de fazer sambadas vem perdendo o protagonismo habitual das pequenas aldeias e
comunidades, na maioria das vezes pela própria falta de identificação com essa
cultura popular. Numa época cada vez mais modernizada, trocamos as aldeias
pelas cidades, mas estas carregam consigo o peso dos preconceitos sociais de
uma sociedade alimentada maioritariamente por novelas da televisão e por sonhos
capitalistas de consumo.
A
Sambada de Coco foi a primeira e hoje ainda é a maior ação do Centro Cultural
Coco de Umbigada, e trás essa brincadeira popular centenária de volta às ruas.
“Através dessa nossa brincadeira de rua,
levamos a expressão da ancestralidade e da memória de nosso terreiro, consolidando
a auto-estima de nossa comunidade como protagonista das políticas e das
realizações de sua própria cultura. Esse ritual, que ocorre em todos os
primeiros sábados de cada mês, é também nossa principal ferramenta de
articulação e diálogo com a comunidade e outros sectores da sociedade, pois é
frequentada por pessoas de todas as origens e lugares.”, explica Mãe Beth de Oxum,
impulsionadora do projeto.
A Sambada de Coco é apresentada no estilo família, no beco onde
fica o terreiro de Beth, agregando as crianças da comunidade a uma música que
retrata a espiritualidade e a ancestralidade. Ela lidera a festa, cantando, tocando e
emanando muito poder e sabedoria como musicista e ativista social. Junto com
seu marido, também ele percussionista, e seus filhos Oxaguiam, Yalodê, Mayra
Akarê e Inayê, eles articulam toda a família e a comunidade numa festa que
atrai muitos residentes e turistas, que desde 1998 cresce cada vez mais.
Tanto, que, em 2004, as ações de preservação da brincadeira do
Coco foram legitimadas pelo Ministério da Cultura, que reconheceu o Terreiro da
Umbigada como Ponto de Cultura, recebendo um kit de equipamentos de informática e de
edição para registros audiovisuais. O Ministério das Comunicações possibilitou
por sua vez o acesso à banda larga, através do programa GESAC (Governo
Eletrônico – Serviço de Atendimento ao Cidadão).
Assim, e desde o início, o Ponto de Cultura serve como ponto de
encontro da comunidade e empoderamento do ser humano e cidadão, através da
valorização e difusão da cultura popular.. Oferece cursos de alfabetização
digital, promove o software livre e
funciona como tele-centro de segunda-feira à sábado. Abrange também uma rádio
livre, a Rádio Amnésia, que passa músicas de raiz, com toda a mistura que tem
em Pernambuco e no Brasil.
Beth de Oxum coordena as ações do Centro, assim como a sua casa e
seu terreiro. No Ponto de Cultura muitos jovens, de vários lugares, mas que
fazem parte da família, ajudam Beth com os projetos, alguns nas áreas de
comunicação/edição de vídeos e documentários, outras na parte musical e
artística.
Antigamente, para Beth tecnologia e software livre eram palavras que não pertenciam ao seu vocabulário
diário. Hoje em dia ela reconhece a necessidade de usar as ferramentas e
oportunidades oferecidas pelas políticas públicas, mas sem perder sua ligação
com a comunidade nem a ancestralidade.
Ressalta também a importância do registro (e divulgação, muitas coisas
estão no youtube) em áudio e vídeo
das expressões culturais de sua cultura e da troca de ideias com outros grupos
e terreiros.
Numa acção itinerante, o Ponto de Cultura gravou 10 CDs de vários
grupos nordestinos de cultura de matriz africana, entre terreiros e
quilombos. Hoje em dia viajam por todo o
Brasil. Ora para se apresentarem com a Sambada de Coco, ora para dar oficinas
de música. Outras vezes Beth de Oxum viaja para dar conferências e espalhar a
sua mensagem de ativista social.
E além de tudo isso conseguiram que aquela pequena comunidade de
Guadalupe, situada na charmosa parte histórica de Olinda, município da região
metropolitana de Recife, tivesse a sua própria inserção no mundo digital
evoluindo de mãos dadas com a difusão dos ensinamentos da sua cultura de raiz,
baseada em conceitos como família, disciplina, respeito e humildade. E claro,
amor.
O programa do governo,
no entanto, não garante a sustentabilidade do Ponto de Cultura. Simplesmente dá
ferramentas que potencializem o que já existe e que deve ser auto-gerido e
auto-sustentado.
O enorme desafio, para
todos os Pontos de Cultura de todo o país, que após o primeiro empurrão dado
com as novas ferramentas, que muitas vezes até nem sabem usar, é mesmo a
sustentabilidade financeira. Uma vez que envolve não só o sustento de projetos
e ações, como também porque pretende assumir protagonismo na geração de
trabalho e renda nas comunidades, para assim possibilitar também um sustento
social, paralelo ao trabalho artístico e espiritual que já fazem.
Um sonho de mãe Beth é
construir um centro para as jovens grávidas e mães da comunidade. Um centro que
promova informação, ajuda e acompanhamento, uma vez que as histórias daquele
bairro, são parecidas com as de muitos outros bairros brasileiros, onde as
meninas são mães a partir dos 17 anos de idade, às vezes até mais jovens, sem
muita estabilidade econômica ou familiar. Mas este por enquanto é apenas mais
um sonho, de muitos que urgem para serem concretizados, manifestados.
No entanto, mais apoios, especialmente
financeiros e de pessoal especializado, disposto também a ensinar enquanto
produz, seriam necessários para concretizar todos os sonhos daquela grande
família de Guadalupe.
Ainda assim, o Coco de
Umbigada e a Sambada de Coco servem como portais para
a intervenção social, para alfabetização digital, onde mestres anônimos da
cultura popular do Coco podem construir uma relação de convívio harmônico do
passado com o presente, na perspectiva de manutenção e continuidade com a
brincadeira no futuro.
(créditos das fotos)
foto 1: sambadadecoco.wordpress.com
foto 2: oficinainclusaodigital.org.br