Monday, July 15, 2013

As diferenças entre andar a pé e de carro pela cidade

Ônibus. Carro. A pé. Realidades distorcidas. Tempo, espaço, sentidos.
Cheiro de Brasil. Único e exótico. Percepções mais aguçadas. Sensações à flor da pele.


O tempo transcorrido é longo e indefinido. As sensações são outras. O nariz está mais aguçado. Os olhos também. Não são só os cheiros que mudam. A temperatura do corpo também. A cidade tem outra cara. Nós temos outro olhar para ver os prédios e as casas.
Finalmente atingindo o destino, o rosto está um pouco corado, o coração acelerado, a boca pedindo um gole de água.
Simples, tão simples como é. Mas como mexeu com a minha mente essa caminhada. Sempre acostumada a me locomover de carro a sensação de ir a pé para um compromisso foi deveras diferente. Senti outras sensações. Percorreram pelo meu corpo diferentes impulsos.
O ar nem é assim tão puro nesta pequena cidade do interior de Minas. Ainda assim me senti bem ao respirá-lo. Conforme ia andando diferentes imagens pitorescas meus olhos iam absorvendo. Assim como peculiares cheiros minhas narinas iam sentindo. O corpo, inicialmente frio deste inverno de Julho gelado, foi esquentando gradualmente até chegar ao ponto de ter calor. Sentir meu rosto corado, minhas mãos suando e minha saliva seca, clamando por água.
Experiência sensorial em um fim de tarde de sábado. Simples, tão simples como é, e inesperado.

Viva a magia da vida!

Friday, May 3, 2013

Ouro azul - Rios subterrâneos como esponjas de água num Planeta quase morrendo de sede.

(créditos da imagem: www.akatu.org.br)

No momento em que o nosso Planeta Água começa a ressentir o uso intensivo de seus recursos naturais, a água se transforma no novo ouro do século XXI, um ouro azul. E, por causa disso, os olhos do mundo estão cada vez mais voltados para a América do Sul.
As águas subterrâneas sul-americanas são como rios gigantes entrelaçados numa complexa teia, formando um dos maiores reservatórios de água pura do mundo, resquícios de uma era pré-histórica de mais de 100 milhões de anos.
Esses rios que correm debaixo da terra são conhecidos como Sistema Aquífero Guarani, nome dado em homenagem à nação indígena que outrora habitou essa região, ocupando uma área de 1,2 milhões de km2, estendendo-se pelo Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai.
Mas afinal, o que se sabe do Aquífero Guarani, esse gigante rio subterrâneo?
Sabe-se que há um interesse internacional declarado, que há uma grande falta de conscientização social e que a sua água é de elevada qualidade, mais protegida da contaminação que outros rios ou nascentes.
Hoje em dia, só no Brasil, cerca de 500 cidades são abastecidas por esse Aquífero que, se preservado, pode sustentar uma população de mais de 700 milhões de pessoas.
Em 1999, o Banco Mundial esteve no Brasil com o objectivo de confirmar as informações do governo americano sobre o potencial da água do Aquífero Guarani. Daí resultou um estudo de aproximadamente R$ 50 milhões para reunir informações e conhecimentos sobre esta reserva.
Na mesma época, o interesse de grandes companhias como a Coca-cola e a Nestle também se voltava para a água. Várias fontes de água localizadas nas áreas de recarga e afloramento do Aquífero foram privatizadas por essas transnacionais.
Em 2011, o Banco Mundial anunciou a implementação de um novo projeto, este no valor de R$168 milhões. Em parceria com o governo brasileiro e a Agência Nacional da Água, o Interáguas foi criado, tendo como principal objetivo as áreas de desenvolvimento do setor, como o gerenciamento dos recursos naturais e o risco de desastres naturais, entre outros.
Adolfo Esquivel, ativista argentino e Prêmio Nobel da Paz, afirma que o interesse internacional é mais do que meramente ambiental e social e que a verdadeira guerra no futuro será por causa da água e não por causa de petróleo.
A presença norte-americana faz-se sentir sutilmente, mas não passa despercebida pelos ativistas, especialmente desde a construção de uma base militar na Tríplice Fronteira (que fica entre Paraguai, Argentina e Brasil).
A lembrança da dominação colonial em todo o continente não deixa que suspeitas e teorias de conspiração cessem de existir.
A pressão dos ativistas para com o Mercosul culminou na assinatura de um acordo entre os países por onde Aquífero se estende, em 2010. Esse acordo prevê medidas para a conservação dos recursos hídricos do manancial, onde cada um dos países tem a soberania no uso da água e é também responsabilizado pela poluição.
Agora, se por um lado grandes indústrias buscam apropriar-se das áreas desses rios subterrâneos, existem outras formas de degradação igualmente perigosas, que podem agravar a dificuldade de acesso da população a esse ouro azul.
O lençol freático do Aquífero ajuda a conservar uma água de excelente qualidade, mas o risco de contaminação é elevado. O uso indiscriminado de agrotóxicos e o despejo de resíduos sem tratamento nas áreas de recarga, que os absorve como uma esponja, é uma séria ameaça que implicaria a renúncia ao próprio recurso.
Embora a maioria da população não conhece a sua importância, grandes grupos econômicos o cobiça ao mesmo tempo que a agro indústria o degrada.
Com o crescimento econômico global, o consumo de água, seja doméstico, na agricultura ou na indústria, aumentou duas vezes mais que o crescimento da população mundial durante o último século.
Estamos esvaziando e poluindo as grandes reservas de água do planeta mais rápido do que elas podem se renovar: estamos fazendo o nosso Planeta Água morrer de sede.
A sede é tanta que os lugares afetados começam a ser a grande Europa e várias regiões dos Estados Unidos.
A importância desse ouro azul é maior que a de qualquer outro recurso que estamos esgotando, e por isso o foco está cada vez mais em quem possui essa nova riqueza, levantando novas questões sobre a Governança da Água.
Mas afinal de quem é o direito de vender a água e para quem?
O tema da água foi largamente falado na Rio+20, sendo cobrado o cumprimento da Resolução da ONU, aprovada em 2010, que consagra o Direito Humano à Água e Saneamento. E mesmo antes de encerrar os debates o plenário elegeu o “Direito à Agua” como recomendação para constar no documento final da. Rio+20.
Mesmo assim, muitos consideraram esse documento pouco ambicioso e muito generalista, afirmando que a Rio+20 foi um fracasso.
Ativistas, ecologistas, estudantes, na verdade, a maioria dos que participavam na Cúpula dos Povos, estão conscientes desse direito e necessidade. Mas enquanto isso, do outro lado, as grandes multinacionais assinavam compromissos em prol do que chamam de “capital natural” e “economia verde”, que, sugerem os ativistas, são apenas sinônimos para mercantilização da natureza.
É portanto urgente a conscientização de toda a população para a existência desses rios subterrâneos que de um jeito quase milagroso preservam a nossa mais preciosa riqueza: o ouro azul da Humanidade.

Manual do Proprietário de uma Criança Montessori

Texto escrito por Donna Bryant Goerts, disponível em http://mariamontessori.com/mm/?p=1674
Retirado do Blog Lar Montessori , traduzido por Gabriel Merched Salomão



" Queridos pais,
Eu quero ser como vocês. Eu quero ser exatamente como vocês, mas quero me tornar como vocês do meu jeito, no meu tempo, pelos meus esforços. Quero assistir a vocês e imitar vocês. Eu não quero ouvir vocês, a não ser por umas poucas palavras de cada vez – a menos que vocês não saibam que eu estou ouvindo. Eu quero trabalho, quero realmente me esforçar com algo muito difícil, algo que eu não consiga fazer imediatamente. Eu quero que vocês deixem o caminho livre para os meus esforços, e quero que me dêem os materiais e ferramentas necessárias para que o sucesso seja possível depois das dificuldades iniciais. Eu quero que vocês me observem e vejam se eu preciso de uma ferramenta melhor, um instrumento mais do meu tamanho, uma escada mais alta e mais segura, uma mesinha mais baixa, uma caixa que eu mesmo possa abrir, uma estante mais baixa, ou uma demonstração mais clara de algum processo. Eu não quero que vocês façam para mim, ou me apressem, sintam pena ou me parabenizem. Só fiquem calmos e me mostrem como fazer as coisas devagar, muito devagar.

Eu vou querer fazer um trabalho todinho de uma vez e sozinho porque eu vejo vocês fazendo, mas isso não funciona para mim. Sejam firmes e coloquem limites para mim nessa hora. Eu preciso que vocês me dêem pequenas partes do trabalho inteiro e me deixem repetir de novo e de novo, até que eu faça tudo perfeitamente. Vocês dividem o trabalho em partes que serão muito difíceis, mas possíveis de fazer com bastante esforço, com muitas repetições e com muita concentração.

Eu quero pensar como vocês, comportar-me como vocês, e ter os mesmos valores que vocês. Eu quero conseguir tudo isso pelo meu trabalho, imitando vocês. Falem devagar. Usem poucas e sábias palavras; Movimentem-se devagar; Façam as coisas em câmera lenta para que eu possa absorvê-las e imitá-las.

Se vocês confiarem em mim e me respeitarem, preparando meu ambiente doméstico e me dando liberdade dentro dele, eu vou me disciplinar e cooperar com vocês mais pronta e frequentemente. Quanto mais vocês se disciplinarem, mais eu vou me disciplinar. Quanto mais vocês obedecerem as leis do meu desenvolvimento, mais eu obedecerei vocês.

Nós temos tanta sorte, eu e vocês, que dentro de mim haja um plano secreto para o meu jeito de ser como vocês. Eu sou guiado pelo meu plano secreto. Eu sou feliz e estou seguro o seguindo. É irresistível para mim. Se vocês interferirem com o trabalho de me revelar de acordo com meu plano secreto e tentarem me forçar a ser como vocês do jeito de vocês, no tempo de vocês e pelo esforço de vocês, eu vou esquecer de trabalhar no meu plano secreto e vou começar a lutar contra vocês. Eu decidirei levantar guerra contra vocês e contra tudo o que vocês defendem. É minha natureza. É meu jeito de me proteger. Podem chamar isso de integridade.

Dependendo da minha personalidade, eu promoverei uma guerra mais aberta ou mais encobertamente. Eu brigarei mais ativa ou passivamente. Uma quantidade imensa de minha energia, do meu talento e inteligência será desperdiçada. Vocês vão ganhar no final, provavelmente, mas eu serei só uma versão mais fraca, uma substituição pobre, um molde tosco daquilo que eu sou capaz de ser, e vocês vão ficar exaustos. Por favor, aliviem a tensão para todos nós preparando o ambiente em casa para que eu possa executar meu trabalho de criar um ser humano e vocês possam se manter no trabalho de educar um. Eu farei o que faço melhor e vocês farão o que fazem melhor.

Eu sou capaz de ser o melhor exemplo de suas melhores qualidades e valores expressos do meu jeitinho. Se vocês prepararem a casa cuidadosa e completamente para mim, mantiverem meus materiais em ordem e em bom estado, colocarem limites claros e firmes, derem-me períodos longos e lentos para trabalhar no meu plano secreto, eu farei o trabalho de desenvolver um novo ser humano – eu! Eu mencionei que preciso dos materiais em todos os ambientes da casa? Eu preciso de materias disponíveis para acesso rápido e fácil, sempre que eu estiver em casa e onde quer que vocês estejam. Eu preciso ter a opção de trabalhar e brincar perto de vocês. Na maior parte do tempo, eu preciso fazer as atividades perto da estante ao qual elas pertencem para que eu crie o hábito de guardá-las depois de usar.

Meu plano secreto para me desenvolvier é executado totalmente pela mão – mãos, digo, as minhas duas, para ser exato. Eu sou um bom artista, um excelente artesão e preciso das melhores ferramentas e materiais. Não me dê coisas inúteis e em excesso, só uns bons materiais que sejam completos e estejam em bom estado. O excesso é pior que desnecessário; é perturbador. Atrapalha meu processo criativo. Me deixa irritado e eu coopero menos com vocês. Eu sei que é difícil de acreditar que por meio das atividades que eu escolho e executo independentemente e em estado de profunda concentração eu esteja desenvolvendo meu caráter, mas é verdade. Eu não posso fazer um bom caráter com um excesso de coisas inúteis e no meio da bagunça.

Minha casa é meu estúdio e meu ateliê, então por favor, certifiquem-se de que ele seja calmo e pacífico. Coloquem músicas leves e tranquilas para tocar enquanto eu estiver acordado. Assistam televisão só depois que eu estiver dormindo. Enquanto estou acordado, faço todo o barulho de que preciso. Ah, e eu preciso que tudo fique em ordem. Eu não posso dar o melhor de mim na bagunça. Eu não sei como ordenar as coisas sozinho, mas eu preciso da ordem, então eu preciso que vocês arrumem tudo para mim pelo menos três vezes por dia. Se vocês ordenarem as coisas para mim de um jeito prático e que seja esteticamente prazeroso e faça sentido para o meu raciocínio lógico, eu vou, devagarinho, imitar vocês mais e mais.

Em algum momento, vocês poderão me mandar colocar as coisas no lugar sozinho, quando eu tiver uns seis anos, desde que vocês se lembrem de checar tudo comigo até os nove anos. Eu não consigo lidar com o acúmulo de um dia inteiro de coisas para guardar, e muito menos o de uma semana inteira. Eu certamente nunca serei capaz de lidar com um mês de bagunça. Se vocês se distrairem e esquecerem de me ajudar a guardar tudo durante o dia e a bagunça se acumular, vocês vão ter que guardar tudo à noite.

Eu odeio ser tão exigente, mas eu preciso ter todos os meus objetos organizados e dispostos em conjuntos completos que eu possa alcançar, de forma que eu possa pegá-los sozinho. Se eu tiver de pedir para vocês toda vez que precisar de alguma coisa, eu vou começar a me sentir um capitão, um general ou um inválido chorão. Parem e pensem, eu realmente poderia assumir um ou outro desses papéis. Nenhum de nós deseja isso. Eu preciso de independência como eu preciso de oxigênio. Ela me faz apresentar o melhor de mim. O tempo que vocês gastam organizando meu ambiente será o tempo que vocês economizarão não tendo que lidar com meu lado petulante, rebelde e teimoso.

A televisão é uma grande interrupção no meu desenvolvimento. Desculpe! Eu sei que vocês não querem ouvir isso: eu preciso de muitas atividades manuais e preciso de muito tempo de processamento. A TV me distrai das atividades mais importantes e enche minha cabeça com mais do que eu tenho tempo para processar. Leiam para mim todos os dias, porque a leitura vai devagar, e me dá tempo para processar junto. A TV me amontoa com mais do que eu sei usar, então ou eu desligo ou fico frenético. Eu sei que vocês podem achar que alguns programas são bons para mim, e vocês podem achar que merecem a folga que a TV dá para vocês, mas nós todos pagamos um preço alto para cada meia hora que eu assistir.

Eu não resisto à TV, mas tudo bem, porque qualquer criança de três a seis anos tem pais, e é para isso que os pais servem. A TV me deixa distraido, irritado, e me faz não cooperar com vocês. Quanto mais eu assistir, mais eu quero assistir, e aí surgem problemas entre nós. Se vocês não conseguem dizer não para o hábito de ver TV agora, onde está meu exemplo para dizer não para outros maus hábitos mais tarde? Além disso, quanto mais eu vejo TV, menos eu quero ser como vocês. Lembrem-se, eu imito o que assisto. Ah sim, cuidado também com os jogos de videogame e computador pelos quais eu vou implorar e que todos os meus amigos têm. Sei que vocês conseguem!

Geralmente, eu vou estar tão concentrado nos meus trabalhos e brincadeiras que não vou ouvir vocês quando falarem comigo. Não piorem as coisas falando de longe ou repetindo o que vocês disseram. Abaixem-se até o nível dos meus olhos, pertinho do meu rosto, consigam minha atenção e olhem nos meus olhos antes de falar. Então, façam das suas palavras poucas, firmes e respeitáveis. Vocês vão economizar muito sofrimento desnecessário se lembrarem de fazer assim. Eu sei que não vai ser fácil lembrar, mas se vocês se esforçarem bastante, podem fazer disso um hábito. Afinal, se vocês não fizerem o que devem, como podem esperar que eu faça o que devo?

Se você não tiverem tempo, energia ou, odeio dizer isso, auto-disciplina para seguir aquilo que vocês dizem, não digam. Ameaças vãs e promessas vazias me fazem desprezar vocês. Vocês ficam parecendo bobos, arbitrários e fracos. Eu sei que eu ajo como se quisesse conduzir o universo sozinho, mas é só bravata. Eu realmente preciso de pais para conduzirem meu mundo. Quando eu não posso confiar que vocês querem dizer o que dizem, eu não posso acreditar em vocês. Isso me faz sentir inseguro e eu chego a alguns extremos. É assustador porque eu amo vocês demais. Eu preciso respeitar vocês e acreditar que vocês querem dizer o que dizem. Vocês são a parte mais importante do meu ambiente em casa.

Vocês se alegrarão de saber que parte do meu plano secreto pede que eu ajude com a casa e o jardim. Não, não pode ser quando vocês quiserem, quando vocês tiverem tempo ou estiverem com vontade. Tem que ser quando eu me interessar. Desculpe, não dá para negociar isso. Afinal, sou eu quem está criando um ser humano aqui. Vocês só estão educando um. Bom, eu acho que não serei de nenhuma ajuda, na verdade, não imediatamente ou diretamente. Vai ser uma complicação. Eu preciso do equipamento no tamanho certo, de demonstrações cuidadosas e de muito tempo e paciência.

Assim que eu tiver dominado uma habilidade, e me tornar capaz de realmente ajudar, vou cansar e escolher não fazer aquilo de novo. Aí eu vou querer aprender algo novo, que exija ainda mais habilidade e desenvoltura e vocês vão ter de começar tudo de novo. Isso vai acontecer mais ou menos uma vez por semana pelos próximos seis anos e vai ocupar bastante do seu tempo tão valioso e escasso. No longo prazo, no entanto, vai ser de grande ajuda, porque eu vou me sentir tão envolvido com a casa e com a família que serei muito mais razoável e cooperativo quanto aos nossos valores e regras. Eu também serei tão capaz, independente e auto-suficiente quando eu tiver uns nove anos que é bastante razoável esperar que eu faça minha parte na casa e no jardim. Eu terei desenvolvido obediência.

Eu sei que minhas necessidades são grandes e muitas. Eu sei que estou pedindo muito de vocês, mas vocês são tudo que eu tenho de verdade. Eu amo vocês e eu sei que vocês me amam além da razão e dos limites. Se eu não puder contar com vocês, com quem eu contarei? Mas não vamos fantasiar. Não precisa ser perfeito. Eu sou forte e resistente. Eu sobreviverei e farei o melhor. Só achei que vocês poderiam querer ter o capítulo sobre Cuidados Básicos com o Ambiente Doméstico do Manual do Proprietário sobre uma Criança Montessori. Vocês podem fazer os próximos três anos serem muito mais divertidos para nós todos se cuidarem de mim conforme minhas necessidades. Ei, nós podemos combinar que vamos satisfazer 50% das minhas necessidades? Ok, Ok, 25% e não se fala mais nisso.

Amor, abraços e beijos,

Seu filho de três a seis anos.

PS: Eu sei que tenho muita sorte. Não são muitos os filhos cujos pais vão realmente ouvir e atentar para suas necessidades em vez de ceder às teimosias e chororôs. Talvez eles temam que seus filhos deixem de amá-los. Talvez temam que seus filhos não sejam populares. Eu vou guardar isso para o Capítulo Seis.

Quanto mais eu assistir TV, mais eu vou reclamar por tédio, porque aos poucos eu vou perder minha tendência natural a seguir meus Períodos Sensíveis – sabem, aquela atração a certas atividades durante períodos determinados do desenvolvimento. Sem a interferência da TV, uma incansável sensação de insatisfação criativa me leva a explorar o ambiente, focar minha atenção em uma atividade, concentrar-me nela, e repeti-la. Sob a influência da TV, a mesma sensação incansável se torna um monstro de cara feia chamado “tédio”, que tiraniza a vocês e a mim, desgasta nossa relação e compromete meu melhor desenvolvimento."

Poema das Árvores - António Gedeão

As árvores crescem sós. E a sós florescem.

Começam por ser nada. Pouco a pouco
se levantam do chão, se alteiam palmo a palmo.

Crescendo deitam ramos, e os ramos outros ramos,
e deles nascem folhas, e as folhas multiplicam-se.

Depois, por entre as folhas, vão-se esboçando as flores,
e então crescem as flores, e as flores produzem frutos,
e os frutos dão sementes,
e as sementes preparam novas árvores.

E tudo sempre a sós, a sós consigo mesmas.
Sem verem, sem ouvirem, sem falarem.
Sós.
De dia e de noite.
Sempre sós.

Os animais são outra coisa.
Contactam-se, penetram-se, trespassam-se,
fazem amor e ódio, e vão à vida
como se nada fosse.

As árvores, não.
Solitárias, as árvores,
exauram terra e sol silenciosamente.
Não pensam, não suspiram, não se queixam.
Estendem os braços como se implorassem;
com o vento soltam ais como se suspirassem;
e gemem, mas a queixa não é sua.

Sós, sempre sós.
Nas planícies, nos montes, nas florestas,
A crescer e a florir sem consciência.

Virtude vegetal viver a sós
E entretanto dar flores.

À espera na pequena estação de Biarritz

Lá fora o ar está húmido e gélido, quase parece Inverno. O sol já há muito se pôs e a chuva cessou por uns momentos. Dentro da pequena estação as pessoas abrigam-se do frio que trespassa as almas. De vez em quando, o vento entra sem ser convidado e arrepia as pessoas que ali esperam. Esperam minutos, esperam horas…

Três jovens estão sentadas num banco e divertem-se tirando fotografias umas às outras. O riso delas soa como o de crianças. Num canto está uma ruiva com a cara pintada de sardas, navegando dentro das páginas do livro que lê, absorta de toda e qualquer atmosfera presente naquela estação. Ela muito provavelmente é francesa, ou não, não sei. Noutro canto não muito distante está um rapaz. Não dá para imaginar a sua nacionalidade, pode ser de qualquer lugar. Ao contrário da ruiva que espera há apenas alguns minutos, ele espera já faz horas. Remexe-se inquieto. Pára de ouvir a música que ouvia há já algum tempo. Lê o jornal, relê. Está cansado da espera e observa, não a estação, mas o mundo à sua volta e se interroga sobre as suas decisões e os caminhos que tomou. No canto oposto está uma família. Esperam há poucos minutos. O pai toca gaita para entreter as crianças que, como todas as crianças, estão irrequietas. São franceses sem dúvida. Regressam à casa depois de uma viagem tranquila. Ninguém parece aperceber-se do frio, excepto um ou outro aconchego ao casaco.

No centro está um casal de velhinhos. Cada um lê a sua revista e espera. Esperam por uma vida que não veio, por uma oportunidade que falhou. Já não se falam. Provavelmente por causa dos anos que já devem estar juntos não têm mais nada a dizer um ao outro. Ao lado deles está um grupo de amigas. Discutem alegremente para onde irão e o que vão fazer a seguir. O cansaço é já evidente nos seus rostos e nos seus corpos. Mas elas pouco se importam. E tão pouco se importam de esperar minutos, horas ou dias.

E assim vão passando as horas nesta estação, que para mim tornou-se gélida e esfria os corações. Contudo, ninguém parece ter dado conta disso. As meninas continuam a tirar fotografias e a rirem como se fosse a coisa mais divertida do mundo. A ruiva continua inerte na sua viagem pelas linhas, palavras e frases do seu romance. O rapaz voltou à sua música e espera. A família conversa, deixando os seus pensamentos deambularem pelas ruas desertas dessa cidade. Assim como os velhos, que continuam sem se falarem, imaginando como seria a vida se a tivessem vivido de forma diferente. Olham para o grupo de jovens ao lado deles com um certo desprezo e indiferença, mas ao mesmo tempo com alguma inveja de não terem tido coragem de se aventurarem por caminhos menos cómodos. 

E eu espero sentada num canto dessa estação e observo todas as pessoas que completam esse quadro. Fantasio e espero… agora já só falta uma hora. 


Coco de Umbigada: uma cultura centenária em ação na comunidade de Guadalupe


Alguém já ouviu falar de Coco de Umbigada? E de Sambada de Coco…? Vamos recapitular então....
O coco é um ritmo típico do nordeste do Brasil, de influência africana e indígena, com músicas de letras simples e que tira partido da zabumba dos mestres percussionistas, sendo acompanhado por dança de roda.
O coco é, assim, um forte elemento da cultura de raiz das comunidades afro-brasileiras do nordeste: nasceu nos quilombos e se proliferou por todo o nordeste, adquirindo diferentes nomes e estilos, incorporando as caraterísitcas e os elementos dos lugares por onde se alastrava. Por isso, hoje em dia, existe diferentes tipos de coco, como coco de roda, coco de salão, coco de rojão, coco de furada, coco de bolada, coco de pisada, coco de umbigada.
Em Olinda, no bairro de Guadalupe o coco é de Umbigada. Beth de Oxum e sua família procuram manter vivas as suas próprias raízes, uma herança de Paratibe, a aldeia de onde provem o marido de Beth, o músico Quinho Caetés.
O nome Umbigada vem da dança, que antes era dançada de forma a que as barrigas batessem uma na outra, umbigo com umbigo. Hoje em dia, apenas simulam o movimento, marcando o ritmo da sambada com o sapateado dos pés.
Com o tempo a tradição de fazer sambadas vem perdendo o protagonismo habitual das pequenas aldeias e comunidades, na maioria das vezes pela própria falta de identificação com essa cultura popular. Numa época cada vez mais modernizada, trocamos as aldeias pelas cidades, mas estas carregam consigo o peso dos preconceitos sociais de uma sociedade alimentada maioritariamente por novelas da televisão e por sonhos capitalistas de consumo.
A Sambada de Coco foi a primeira e hoje ainda é a maior ação do Centro Cultural Coco de Umbigada, e trás essa brincadeira popular centenária de volta às ruas.
 “Através dessa nossa brincadeira de rua, levamos a expressão da ancestralidade e da memória de nosso terreiro, consolidando a auto-estima de nossa comunidade como protagonista das políticas e das realizações de sua própria cultura. Esse ritual, que ocorre em todos os primeiros sábados de cada mês, é também nossa principal ferramenta de articulação e diálogo com a comunidade e outros sectores da sociedade, pois é frequentada por pessoas de todas as origens e lugares.”, explica Mãe Beth de Oxum, impulsionadora do projeto. 
A Sambada de Coco é apresentada no estilo família, no beco onde fica o terreiro de Beth, agregando as crianças da comunidade a uma música que retrata a espiritualidade e a ancestralidade.  Ela lidera a festa, cantando, tocando e emanando muito poder e sabedoria como musicista e ativista social. Junto com seu marido, também ele percussionista, e seus filhos Oxaguiam, Yalodê, Mayra Akarê e Inayê, eles articulam toda a família e a comunidade numa festa que atrai muitos residentes e turistas, que desde 1998 cresce cada vez mais.
Tanto, que, em 2004, as ações de preservação da brincadeira do Coco foram legitimadas pelo Ministério da Cultura, que reconheceu o Terreiro da Umbigada como Ponto de Cultura, recebendo um kit de equipamentos de informática e de edição para registros audiovisuais. O Ministério das Comunicações possibilitou por sua vez o acesso à banda larga, através do programa GESAC (Governo Eletrônico – Serviço de Atendimento ao Cidadão). 
Assim, e desde o início, o Ponto de Cultura serve como ponto de encontro da comunidade e empoderamento do ser humano e cidadão, através da valorização e difusão da cultura popular.. Oferece cursos de alfabetização digital, promove o software livre e funciona como tele-centro de segunda-feira à sábado. Abrange também uma rádio livre, a Rádio Amnésia, que passa músicas de raiz, com toda a mistura que tem em Pernambuco e no Brasil.
Beth de Oxum coordena as ações do Centro, assim como a sua casa e seu terreiro. No Ponto de Cultura muitos jovens, de vários lugares, mas que fazem parte da família, ajudam Beth com os projetos, alguns nas áreas de comunicação/edição de vídeos e documentários, outras na parte musical e artística.
Antigamente, para Beth tecnologia e software livre eram palavras que não pertenciam ao seu vocabulário diário. Hoje em dia ela reconhece a necessidade de usar as ferramentas e oportunidades oferecidas pelas políticas públicas, mas sem perder sua ligação com a comunidade nem a ancestralidade.  Ressalta também a importância do registro (e divulgação, muitas coisas estão no youtube) em áudio e vídeo das expressões culturais de sua cultura e da troca de ideias com outros grupos e terreiros.
Numa acção itinerante, o Ponto de Cultura gravou 10 CDs de vários grupos nordestinos de cultura de matriz africana, entre terreiros e quilombos.  Hoje em dia viajam por todo o Brasil. Ora para se apresentarem com a Sambada de Coco, ora para dar oficinas de música. Outras vezes Beth de Oxum viaja para dar conferências e espalhar a sua mensagem de ativista social.
E além de tudo isso conseguiram que aquela pequena comunidade de Guadalupe, situada na charmosa parte histórica de Olinda, município da região metropolitana de Recife, tivesse a sua própria inserção no mundo digital evoluindo de mãos dadas com a difusão dos ensinamentos da sua cultura de raiz, baseada em conceitos como família, disciplina, respeito e humildade. E claro, amor.
O programa do governo, no entanto, não garante a sustentabilidade do Ponto de Cultura. Simplesmente dá ferramentas que potencializem o que já existe e que deve ser auto-gerido e auto-sustentado.
O enorme desafio, para todos os Pontos de Cultura de todo o país, que após o primeiro empurrão dado com as novas ferramentas, que muitas vezes até nem sabem usar, é mesmo a sustentabilidade financeira. Uma vez que envolve não só o sustento de projetos e ações, como também porque pretende assumir protagonismo na geração de trabalho e renda nas comunidades, para assim possibilitar também um sustento social, paralelo ao trabalho artístico e espiritual que já fazem.
Um sonho de mãe Beth é construir um centro para as jovens grávidas e mães da comunidade. Um centro que promova informação, ajuda e acompanhamento, uma vez que as histórias daquele bairro, são parecidas com as de muitos outros bairros brasileiros, onde as meninas são mães a partir dos 17 anos de idade, às vezes até mais jovens, sem muita estabilidade econômica ou familiar. Mas este por enquanto é apenas mais um sonho, de muitos que urgem para serem concretizados, manifestados.
 No entanto, mais apoios, especialmente financeiros e de pessoal especializado, disposto também a ensinar enquanto produz, seriam necessários para concretizar todos os sonhos daquela grande família de Guadalupe.
Ainda assim, o Coco de Umbigada e a Sambada de Coco servem como portais para a intervenção social, para alfabetização digital, onde mestres anônimos da cultura popular do Coco podem construir uma relação de convívio harmônico do passado com o presente, na perspectiva de manutenção e continuidade com a brincadeira no futuro.



(créditos das fotos)
foto 1: sambadadecoco.wordpress.com
foto 2: oficinainclusaodigital.org.br